Amarildo Clayton Godoi Brilhante
Ao
acordar hoje pela manhã, abri a janela vagarosamente como sempre faço a fim de
contemplar a beleza irradiante do sol. Como é bom saber que ele está ali, como
é bom saber que mais um dia me foi concedida a oportunidade, levantar-me da
cama, como é maravilhoso fazer uma rápida checagem e ver que ainda posso
enxergar, que todos os movimentos do meu corpo estão perfeitos. A cada manhã
que meus olhos se abrem resta o sentimento de gratidão a Deus, esse ente
superior que não o vemos, mas que de certa forma se coloca a nos observar. Tudo
é tão lindo dependendo de como queremos enxergar, eu posso enxergar o canto dos
pássaros naquela manhã como algo chato, posso enxergar o sol como algo ruim que
irá derreter a minha caixa craniana, mas também posso contemplar o dom da vida
e enxergar toda beleza e complexidade que há por trás disso.
Mas eu notei algo
diferente naquela manhã e não era o sol nem o canto dos pássaros. O assombro
tomou conta de mim e imediatamente pensei “meu Deus”. Não poderia ser verdade,
estava acontecendo lá, do outro lado do mundo e, eu podia ver tudo através da
televisão. E pouco a pouco foi tomando conta de outros países, pessoas
morrendo, seus familiares, parentes e amigos chorando. As lágrimas são a
representação do contido na alma. Elas não são pesadas por serem frutos de uma
alegria, entretanto, são intensamente pesadas quando representam a dor
exteriorizada, é a dor contida falando por meio de lágrimas. Às vezes não
sentimos quando é no outro, afinal é no outro, mas posso vê-las de dentro pra
fora comunicando abruptamente que algo está acontecendo. E quem em sã
consciência não conseguiria fazer esta mínima leitura? Este assombro me
perseguiu em meu imaginário o dia inteiro, ao chegar no trabalho ou pelo lugar
em que passava os comentários iam pouco a pouco aumentando. A imprensa
noticiando, os casos aumentando e o meu coração ficando ainda mais aflito. Aos
poucos foram entrando diversos sentimentos em meu interior dos quais eu queria
refutá-los, tirá-los de dentro de mim como se via nos desenhos e filmes, mas
havia um único e especial problema, não era uma ficção. Tratava-se de cenas da
vida real e elas estavam a me perseguir e me via como uma ovelha sendo
conduzida ao matadouro, sabendo que podia estar próximo o seu fim. Este é
caminho que nos lembra a paixão de Cristo e a dor no calvário, apenas lembra,
pois a intensidade de um pode não ser a mesma do outro. Todavia, as angústias,
o medo, o sentimento de fraqueza e impotência frente ao invisível se faziam
presente.
Quantas coisas nos são invisíveis e que sabemos estar ali, respiramos
e não vemos o ar, porém sabemos estar ali, basta olhar e aproximar de um corpo
cadavérico e veremos que o ar gratuito se foi e não se sabe para onde, nem o ar
e nem a alma do pobre. Aos poucos foram desvendando o que até então era
mistério, o invisível tornou-se conhecido e ganhou até nome, COVID-19. Quem
ganha nome neste mundo que Deus nos pôs aqui, ganha nome quem tem existência.
Uma ameaça invisível, mas bem real, ceifadora de vidas. Ao mesmo tempo que ela
surgiu o ser humano foi se redescobrindo que sua existência precisava de freios
e contrapesos. Em suas projeções mentais o mundo era só dinheiro, conquistas, deitar-se
em bebedeiras, ir e vir, fazer e desfazer. Foi percebendo que as riquezas mais
profundas estavam sendo deixadas para trás, como: família, as brincadeiras
sadias, a comunhão naquele espaço da mesa que há muito já havia sido
abandonada, passaram a ficar mais tempos juntos e presos em seus míseros
casulos. Perceberam que a vida podia estar por um fio, perceberam que a
convivência coletiva estava prejudicada, perceberam que agora havia uma
responsabilidade individual e ao mesmo tempo coletiva, a responsabilidade da
prevenção. A responsabilidade do cuidar de si e do outro, a empatia passou a
tomar conta dos corações à medida que os problemas mostravam se gigantes.
Pessoas em seus lares chorando por não terem o que comer, pessoas em seus lares
chorando a morte dos entes queridos cujo caixão não podia ser aberto para dar o
último adeus, pessoas chorando a perca de seus empregos, pessoas em pânico
chorando pelo caos que lentamente se mostrava a sua frente.
A
morte é uma lembrança para quem fica, celebremos pois a vida, mas a celebremos
hoje, amanhã e sempre com alegria, celebremos com uma mente preparada de quem
sabe que a vida é uma dádiva divina, visto que ninguém consegue a ela sequer acrescentar
um côvado, celebremos, pois todos havemos de morrer um dia. Entretanto, que
nunca percamos de vista que o eu sem o outro não somos nada, é como um único
passarinho sobrevivente sobre os rescaldos de uma floresta olhando o imenso
vazio desolador. O eu sem o outro não somos nada, a suma importância não está
no eu e sim no nós. E quando tudo passar teremos o nosso genuíno sorriso de
volta e vai passar.
E-mail para contato: amarildo.brilhante@fatec.sp.gov.br
Amarildo Brilhante, é escritor, palestrante e professor. Formado em Direito, Letras, Pedagogia, Técnico em Informática, Técnico em Contabilidade.
Esta publicação pode ser citada ou reproduzida livremente, com a condição de que a sua procedência e autor seja mencionada .
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2 comentários:
A sensibilidade do escritor expressa a síntese de um tempo cinzento. A dor humana, as perdas enfim o bombardeio que assolou a vida. Com esperança, no entanto, o eu lírico demonstra fé para o riso que virá com o passar do estrondo.
Uma curiosa, intrigante e perfeita análise, amigo Elísio, o que revela uma ótica afinada e acentuada. Gratidão pela leitura e comentário.
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