04/07/2020

A importância do sujeito nós


Amarildo Clayton Godoi Brilhante
     Ao acordar hoje pela manhã, abri a janela vagarosamente como sempre faço a fim de contemplar a beleza irradiante do sol. Como é bom saber que ele está ali, como é bom saber que mais um dia me foi concedida a oportunidade, levantar-me da cama, como é maravilhoso fazer uma rápida checagem e ver que ainda posso enxergar, que todos os movimentos do meu corpo estão perfeitos. A cada manhã que meus olhos se abrem resta o sentimento de gratidão a Deus, esse ente superior que não o vemos, mas que de certa forma se coloca a nos observar. Tudo é tão lindo dependendo de como queremos enxergar, eu posso enxergar o canto dos pássaros naquela manhã como algo chato, posso enxergar o sol como algo ruim que irá derreter a minha caixa craniana, mas também posso contemplar o dom da vida e enxergar toda beleza e complexidade que há por trás disso. 
     Mas eu notei algo diferente naquela manhã e não era o sol nem o canto dos pássaros. O assombro tomou conta de mim e imediatamente pensei “meu Deus”. Não poderia ser verdade, estava acontecendo lá, do outro lado do mundo e, eu podia ver tudo através da televisão. E pouco a pouco foi tomando conta de outros países, pessoas morrendo, seus familiares, parentes e amigos chorando. As lágrimas são a representação do contido na alma. Elas não são pesadas por serem frutos de uma alegria, entretanto, são intensamente pesadas quando representam a dor exteriorizada, é a dor contida falando por meio de lágrimas. Às vezes não sentimos quando é no outro, afinal é no outro, mas posso vê-las de dentro pra fora comunicando abruptamente que algo está acontecendo. E quem em sã consciência não conseguiria fazer esta mínima leitura? Este assombro me perseguiu em meu imaginário o dia inteiro, ao chegar no trabalho ou pelo lugar em que passava os comentários iam pouco a pouco aumentando. A imprensa noticiando, os casos aumentando e o meu coração ficando ainda mais aflito. Aos poucos foram entrando diversos sentimentos em meu interior dos quais eu queria refutá-los, tirá-los de dentro de mim como se via nos desenhos e filmes, mas havia um único e especial problema, não era uma ficção. Tratava-se de cenas da vida real e elas estavam a me perseguir e me via como uma ovelha sendo conduzida ao matadouro, sabendo que podia estar próximo o seu fim. Este é caminho que nos lembra a paixão de Cristo e a dor no calvário, apenas lembra, pois a intensidade de um pode não ser a mesma do outro. Todavia, as angústias, o medo, o sentimento de fraqueza e impotência frente ao invisível se faziam presente. 
     Quantas coisas nos são invisíveis e que sabemos estar ali, respiramos e não vemos o ar, porém sabemos estar ali, basta olhar e aproximar de um corpo cadavérico e veremos que o ar gratuito se foi e não se sabe para onde, nem o ar e nem a alma do pobre. Aos poucos foram desvendando o que até então era mistério, o invisível tornou-se conhecido e ganhou até nome, COVID-19. Quem ganha nome neste mundo que Deus nos pôs aqui, ganha nome quem tem existência. Uma ameaça invisível, mas bem real, ceifadora de vidas. Ao mesmo tempo que ela surgiu o ser humano foi se redescobrindo que sua existência precisava de freios e contrapesos. Em suas projeções mentais o mundo era só dinheiro, conquistas, deitar-se em bebedeiras, ir e vir, fazer e desfazer. Foi percebendo que as riquezas mais profundas estavam sendo deixadas para trás, como: família, as brincadeiras sadias, a comunhão naquele espaço da mesa que há muito já havia sido abandonada, passaram a ficar mais tempos juntos e presos em seus míseros casulos. Perceberam que a vida podia estar por um fio, perceberam que a convivência coletiva estava prejudicada, perceberam que agora havia uma responsabilidade individual e ao mesmo tempo coletiva, a responsabilidade da prevenção. A responsabilidade do cuidar de si e do outro, a empatia passou a tomar conta dos corações à medida que os problemas mostravam se gigantes. Pessoas em seus lares chorando por não terem o que comer, pessoas em seus lares chorando a morte dos entes queridos cujo caixão não podia ser aberto para dar o último adeus, pessoas chorando a perca de seus empregos, pessoas em pânico chorando pelo caos que lentamente se mostrava a sua frente.
     A morte é uma lembrança para quem fica, celebremos pois a vida, mas a celebremos hoje, amanhã e sempre com alegria, celebremos com uma mente preparada de quem sabe que a vida é uma dádiva divina, visto que ninguém consegue a ela sequer acrescentar um côvado, celebremos, pois todos havemos de morrer um dia. Entretanto, que nunca percamos de vista que o eu sem o outro não somos nada, é como um único passarinho sobrevivente sobre os rescaldos de uma floresta olhando o imenso vazio desolador. O eu sem o outro não somos nada, a suma importância não está no eu e sim no nós. E quando tudo passar teremos o nosso genuíno sorriso de volta e vai passar.
Amarildo Brilhante, é  escritor,  palestrante e professor. Formado em Direito, Letras, Pedagogia, Técnico em Informática, Técnico em Contabilidade.  

Esta publicação pode ser citada ou reproduzida livremente, com a condição de que a sua procedência e autor  seja mencionada .

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2 comentários:

ELISIO FARIA disse...

A sensibilidade do escritor expressa a síntese de um tempo cinzento. A dor humana, as perdas enfim o bombardeio que assolou a vida. Com esperança, no entanto, o eu lírico demonstra fé para o riso que virá com o passar do estrondo.

Amarildo Brilhante disse...

Uma curiosa, intrigante e perfeita análise, amigo Elísio, o que revela uma ótica afinada e acentuada. Gratidão pela leitura e comentário.