13/03/2020

Os Algozes

Amarildo Clayton Godoi Brilhante
Faz tantos dias que sinto saudade de você, do seu olhar penetrante, você parecia com os teus olhos estar lendo a minha mente, esboçava alguns gestos só para chamar a minha atenção. Lembro-me das muitas vezes que tive que correr atrás de você. Fazia isso de propósito. Quando você se colocava logo cedo ao pé da porta, ficava ali me contemplando silenciosamente. Lembro-me de tantos detalhes nessa nossa intrigada relação que nem dou conta de tantas coisas. Você me ouvia silenciosamente, aliás você e somente você soube me ouvir como ninguém. Ah, se não tivessem sido eles, os algozes!
Confesso que a saudade, às vezes, nos maltrata, pois ela é uma evidência de que houve sentimento de amor, esse querer bem. Você correspondia do seu jeito, falava em sua própria linguagem, mas tal era a nossa sintonia que nos compreendíamos em nossas linguagens. Sei que você merecia o melhor, mas sempre foi tratado como um vira-lata. Não posso negar, era mesmo um vira-lata. A riqueza não chegou a seu tempo. Lembro-me do dia que eu havia dito que quando a riqueza chegasse teríamos vida de patrão e você apenas me olhava atentamente. Ao certo pensava que eu era um maluco. Entretanto, a idade já lhe era pesada e aproveitaram a minha ausência para aliviar o teu sofrimento, pois sabiam que isso me causaria dor. O teu fim parecia mesmo estar próximo. A dor, nos faz valorizar a saúde, a alegria nos faz esquecer a tristeza e assim coexistem o bem e o mal nesse imenso trigal.
Ao retornar naquele dia estafante tomei conhecimento do acontecido. Meu peito ficou sufocado com tal notícia, meus olhos se encheram de lágrimas. Fiquei sensível e sensibilizado com a tua partida. Eu sabia que você já vinha sofrendo há longos meses e que aquela doença o maltratava. Mesmo assim, embora parecesse resistir bravamente tudo que tem um início um dia tem um fim, seja ele bom ou ruim, afinal fazemos partes do quadrante do tempo, somos reféns e subjugados por ele.
Já fazia meses que havia um tumor em sua bunda, antes sofrera de cinomose canina. O desleixo era tão grande que nem o acompanhara aplicando as vacinas adequadamente. Ao contrair a cinomose via-o aos poucos arrastando as duas patas traseiras e o problema avolumando. O vírus atacou o sistema nervoso, vendo a complexidade do caso correu para o veterinário, procurou logo o mais barateiro, manifestou o desejo de vê-lo sacrificado, mas a imposição do veterinário fora contrário dizendo: _ "Ainda há salvação!"
Aquietou portanto o coração e o deixou sob os cuidados médicos. Melhorou consideravelmente, porém, houve sequelas. Batia os dentes como quem rangesse com extrema força e a pele sobre os dentes repuxada no canto direito do focinho. Era perturbador vê-lo assim, mas mais perturbador foi o tumor. A sequência de sofrimentos veio a pesar consideravelmente. Suas costas já se encontravam arqueadas, seus pelos caíam, seu tempo de estímulo-resposta já não era mais o mesmo.
Cansado e não mais querendo ter cachorro em sua casa começou a oferecê-lo a várias pessoas. Cada um respondia dando suas desculpas, não querendo arcar com um novo compromisso. Embora insistisse aqui e ali ninguém quis o cãozinho preto e branco, de um olhar meigo, uma cara simpática e que não dava o mínimo de trabalho, nem mesmo para os gatos e ratos. Cheirava a todos que apareciam na casa e rodeava-os em busca de carinho. Parecia estar carente, não dispensava o afago de ninguém. As pessoas ao vê-lo tinham medo dele, mas mal sabiam que bastava um pingo d'água para afugentá-lo, medroso como era fugia dos banhos. Era um verdadeiro exercício para capturá-lo se fosse para banhar.
Mas como nem tudo dura para sempre, nem mesmo os amores, o fatídico dia chegou. Seus algozes estavam de olho, somente esperando a oportunidade. Havia um ali na casa, um que o odiava, vivia proferindo impropérios contra o animal, tão fiel e tão amável, como alguém poderia odiá-lo. Há sempre aqueles que são do contra, que fazem oposição por fazer. E este era um deles, pois não havia motivos. O cãozinho era uma graça. Como qualquer animal era dependente dos tratos de alguém, mas este, ah! este não colocava nem água como convinha. Havia maldade naquele coração. Os cães são como anjos disfarçados que vêm a terra para ensinar ao homem o que é fidelidade, cuidado, amor, proteção e dependência. Homens e mulheres precisam aprender com eles. Os algozes aproveitaram a saída do seu protetor para eliminá-lo. Como sabiam que não retornaria tão cedo dava tempo de executar o plano com certo vagar. A intenção segundo eles era a prática da eutanásia, por fim ao sofrimento. Argumentavam que aquele tumor já estava enorme e que aquilo trazia sofrimento ao bichinho sempre que precisava evacuar, além do fato de já estar velho.
Longe dali seu legítimo dono não saberia do transcorrido, pois o que os olhos não veem o coração não sente, diz o provérbio. Mal sabia que só ao retornar daria conta da morte de seu estimado cãozinho. Naquela viagem acabou por se perder duas vezes na pista entrando em rotas erradas, o que consequentemente atrasou o retorno. Já estava escuro quando chegou a cidade de Santo Antônio do Aracanguá, terra natal. Não desejava nada a não ser descansar e nem havia percebido a ausência de seu animal. Fora para o banho, logo após comeu alguma coisa e caiu na cama. O amanhecer ainda estava por vir. Eles, o executaram. Um dos algozes se aproximou do cachorro que era muito manso, dócil e com uma injeção em mãos aplicaria o que chamamos de anestesia. Pôs a mão sobre o animal na região do pescoço e o alisou, tão logo ganhou a confiança e após as carícias feitas injetou o líquido no animal. Ele consciente sentiu a picada leve, moderada e sobretudo os efeitos da anestesia geral que pouco a pouco o foram amolecendo. Perdendo as forças começou a se dobrar e a deitar. A esta altura, ele já teria percebido que a morte estava a caminho, aliás no dia anterior havia escutado a conversa sobre sua morte e como os cães são criaturas disfarçadas e divinamente criadas já sabia o que haveria de vir. Silenciosamente aceitou o seu destino.
Por outro lado, o que poderia ele ter feito? Aos homens foi dado o poder de submeter as criaturas a sua vontade, é bem lógico que, às vezes, elas é que dão o troco. Um dia da caça outro do caçador. Este foi o dia do caçador. Lentamente foi se deitando até deitar-se por completo, seus olhos foram se fechando pouco a pouco até fechar-se por completo. Não estava morto ainda, mas dava alguns espasmos de vida. Possivelmente, seriam contrações musculares, visto que o cérebro ainda funcionava, embora não sentisse mais o pulsar do coração. Neste instante, friamente e calmamente pegou um revólver de cano prata, uma arma automática já carregada e mirou sobre a cabeça do cãozinho e como alguém tal qual um matador de aluguel, sangue frio, não hesitou, puxou o gatilho calmamente como quem atira despreocupadamente uma pedra num rio. Desferiu um tiro, apenas um. Atingindo assim a parte súpero-anterior, na região cervical vindo a ter uma morte rápida, praticamente indolor. O outro algoz se encarregou da desova do corpo, mas conhecendo-o, jogou em algum lugar, nem mesmo dando a ele uma cova e um funeral digno, pois pelos anos vividos foi motivo de alegrias. Algozes são algozes. Onde a razão prevalece o que menos conta é o coração.
O mais traumático é que no dia anterior aquele olhar revelava muito. Ele me olhou nos olhos como quem se despedisse, nunca me esqueci daquele olhar vivo como uma fotografia em minha mente. Era o olhar de despedida, um olhar sereno. O olhar dele dentro dos meus olhos diziam mais do que mil palavras, era um olhar de retorno e, ainda hoje, convivo com isso como se fosse ontem, aquela imagem dele as portas todas as manhãs, um único e leve assobio e lá estava ele, as batidas na panela, as vezes que morria de medo de água, as vezes que corria pra rua, as vezes que bastava uma palavra e o respeito era imediato, as poucas vezes que andamos na rua, a sua fidelidade e tolerância pelas mazelas do seu dono, entre tantas outras. Você se foi, mas a sua memória se eternizou dentro de mim e sem eu perceber descobri que te amava.
Os algozes nem mesmo me comunicaram o feito. Foi naquela manhã que ao acordar, quando saí a porta, percebi a sua ausência. Assobiei, não tive resposta. Por alguns segundos pensei que você tivesse ganhado as ruas. Percorri todo o quintal e foi então que me dei conta que você não estava mais lá. Eu sei é triste a dor da partida, e temos de aprender a lidar com ela, mas ainda sinto saudades da tua presença, do teu olhar. Saudades eternas...Pitoco.

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